sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Um homem de consciência

Precisava retomar a escrita nesse espaço, e o mote veio através de uma mensagem de minha prima no Whatsapp.

Ela passava pelo dilema de largar um ótimo emprego, onde teria que dividir seu espaço e sua genialidade com uma pessoa sem caráter e princípios, e que foi contratada para coordenar a equipe.

E fez um golaço de placa. Disse: abandonei o emprego. Leiam Um homem de consciência, de Monteiro Lobato. 

E fim, não falou mais nada...

Não conhecia esse conto do 'Pestana', que está publicado no livro Cidades Mortas, e que transcrevo abaixo, extraído desse site.

Desnecessário legenda. Mas eu não poderia deixar de lhe dizer: "Amo viver com pessoas inteligentes".

* * *


Chamava-se João Teodoro, só. O mais pacato e modesto dos homens. Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o mínimo valor a si próprio. Para João Teodoro, a coisa de menos importância no mundo era João Teodoro.

Nunca fora nada na vida, nem admitia a hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito tempo não quis nem sequer o que todos queriam: mudar-se para terra melhor.

Mas João Teodoro acompanhava com aperto de coração o desaparecimento visível de sua Itaoca.

– Isto já foi muito melhor, dizia consigo. Já teve três médicos bem bons – agora só um, e bem ruinzote. Já teve seis advogados e hoje mal dá serviço para um rábula ordinário como o Tenório. Nem circo de cavalinhos bate mais por aqui. A gente que presta se muda. Fica o restolho. Decididamente, a minha Itaoca está se acabando…

João Teodoro entrou a incubar a ideia de também mudar-se, mas para isso necessitava dum fato qualquer que o convencesse de maneira absoluta de que Itaoca não tinha mesmo conserto ou arranjo possível.

– É isso, deliberou lá por dentro. Quando eu verificar que tudo está perdido, que Itaoca não vale mais nada de nada de nada, então eu arrumo a trouxa e boto-me fora daqui.

Um dia aconteceu a grande novidade: a nomeação de João Teodoro para delegado. Nosso homem recebeu a notícia como se fosse uma porretada no crânio. Delegado, ele! Ele que não era nada, nunca fora nada, não queria ser nada, não se julgava capaz de nada…

Ser delegado numa cidadezinha daquelas é coisa seríssima. Não há cargo mais importante. É o homem que prende os outros, que solta, que manda dar sovas, que vai à capital falar com o governo. Uma coisa colossal ser delegado – e estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de Itaoca!

João Teodoro caiu em meditação profunda. Passou a noite em claro, pensando e arrumando as malas. Pela madrugada, botou-as num burro, montou no seu cavalinho magro e partiu.

Antes de deixar a cidade, foi visto por um amigo madrugador.

– Que é isso, João? Para onde se atira tão cedo, assim de armas e bagagens?

– Vou-me embora, respondeu o retirante. Verifiquei que Itaoca chegou mesmo ao fim.

– Mas como? Agora que você está delegado?

– Justamente por isso. Terra em que João Teodoro chega a delegado, eu não moro. Adeus.

E sumiu.

(Monteiro Lobato, CIDADES MORTAS. 12a Edição. São Paulo,   Editora Brasiliense, 1965)


* * *

Com este conto, do autor preferido de minha mãe, deixo aqui minha homenagem por não mais ter seus comentários estampados a cada postagem desse blog. Hoje fazem exatos nove meses que mamãe partiu para ouvir ao vivo as histórias do seu autor favorito.

14 comentários:

  1. Quem é vivo sempre aparece!

    Gostei muito do post. Para o bem ou para o mau eu me vi um pouco João Teodoro...estranho isso!

    Um abraço e um beijo!

    Felipe de Souto

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    1. Cliente antigo também sempre aparece! Saudades de você. Grande abraço.

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  2. Preciso seguir seu exemplo e escrever mais. Motivo temos. Às vezes me sinto como João Teodoro. Adorei!!!!

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    1. Dou o maior apoio!! Imagino o que de beleza não sairá desses escritos! Manda ver querida professora!

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  3. Boa prosa, esta Só podia... Inspirada num conto deste...

    Pelo jeito, todos nós temos ou passamos por um dia de nos sentirmos retirantes daquele nosso velho mundo. Tão seguro quanto mentiroso! Mundo de mentirinhas? Tô me indo embora!

    Que bom que voltou! Algumas coisas funcionam muito bem na forma original, como escrever em caneta e papel, dedo no blog, prosa e troça!

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    1. Você é um grande exemplo dessa consciência do João! Sou fã das suas histórias de vida.

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  4. rIC, que bom que voce retornou a esse espaço, todos estavamos com saudades, melhor ainda falando sobre o nosso querido PESTANA, que sua mãe tanto admirava. Que ela possa te abençoar e te envolver nas boas vibrações de carinho para que você continue desenvolvendo este blog da maneira tão brilhante quanto você vem fazendo até hoje. Deus te abençoe!
    Pona

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    1. Pona, minha referência!! Te amo velho lobo do mar, enquanto houver sol.

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  5. Amo Monteiro Lobato! Sensacional este conto. Obrigada por compartilhar a preferência da sua mãe conosco.

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    1. É uma pena como ele anda esquecido nos dias de hoje...fique a vontade para se identificar nas próximas postagens, gosto de responder pessoalmente cada interação feita aqui. abs

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  6. Bonito texto, Ricardo. Estava com saudades. Grande abraço.

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    1. Olá Fernando, bom saber que continua por aqui. Grande abraço.

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  7. Obrigado meu amigo, ótimo texto. Abraços

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Fiado só amanhã.
Obrigado e volte sempre.