terça-feira, 17 de novembro de 2015

Buscar o sim

A gente se acomoda,
A gente se acostuma,
A gente procastina,
A gente não se arruma,
Até quando conseguiremos?
viver assim é o que queremos?
Contentar-se com coisa alguma.

* * *

Há tempos não fazia uma septilha.
Saudades dos amigos cordelistas...

* * *

Tem uma frase de um amigo que gosto muito. Sempre muito agitado, correndo atrás dos sonhos, um batalhador incansável. Ele diz:
"Cara, o não está garantido, vamos buscar o sim".

E quantos estamos dispostos a buscar o sim?

É simples demais, mas requer mudança de atitude.

Por que ter medo de ganhar um não? Se não fizermos nada, a resposta já é essa mesma!

Precisamos mais de sim. Sair da zona de conforto. Arriscar um pouco mais.

Lembrei de um texto, trabalhado em sala de aula há 25 anos. Sim, coisas boas são inesquecíveis.

Oficina de leitura da Tia Zulma. O texto é de 1972, e continua muito atual.

* * *
Eu sei, mas não devia (Marina Colasanti)

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

* * *
Como diz Gilberto Gil: "a gente quer mu-dança".

(Inspirado em Raina, que tinha o não como resposta e foi buscar o sim, e conseguiu).

6 comentários:

  1. De novo, o que eu precisava ouvir...
    Tem bola de cristal, Amigo?

    Ando meio sem palavras...
    Mas te digo que são pontuais ests palavras! As tuas e as de Marina Colassanti

    Grande abraço!

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  2. Fala sério que esse texto é de 1972?! Garanto que foi escrito ontem!!!
    Muito bom, como sempre! Apenas não concordo com a parte de "dormir cedo", o que acho essencial, sem que isso signifique não ter vivido o dia...o importante é q qualidade do que se curtiu, e não o número de horas acordado!
    Mandou bem, agora só não mente mais dizendo que o texto é mais velho que eu!
    Te amo!

    Felipe de Souto

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  3. Sensacional! Texto super atual! Vamos correr atrás do Sim, pois o não já temos! 👏👏👏👏👏

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  4. e
    "sem desafios, não há mudanças"

    também sinto saudades dos cordéis, as vezes leio, as vezes declamo, mas o que mais faço é reclamar, quando tenho de encarar é a dor do desacostumamento a que nos convida o texto.

    obrigado e um imenso gordoputo abraço!

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  5. Ric, como sempre fico pasmo com a sua simplicidade de narrativa, mesmo
    o texto sendo de tão renomada escritora, educadora, brasileira e que
    muito admiro, como também admiro a educadora que apresentou o texto há
    mais de 20 anos, minha querida irmã, amiga e companheira de algumas viagens, no corre corre do dia a dia, nem sempre podemos parar para procurar o tão sonhado sim, mas acredite, vamos começar a dosar nosso tempo por esta busca incessante do sim, pois o não você sabe como é difícil para eu dizer. Um abraço e continuo devendo o Pona language.

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  6. Minha mãe sempre me disse: "Vai lá. O não é garantido". :)

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Fiado só amanhã.
Obrigado e volte sempre.